terça-feira, 27 de setembro de 2011

Trio de estreantes em longa abre a mostra competitiva hoje com o documentário -As hiper mulheres

Trio de estreantes em longa abre a mostra competitiva hoje com o documentário As hiper mulheres




27/09/2011

Ricardo Daehn




Houve um momento em que, no meio dos elementos do “outro planeta” chamado Alto Xingu, Leonardo Sette, um dos três diretores do documentário As hiper mulheres, caiu em torpor. “As câmeras estavam lá, na praça central da aldeia onde acontecia um ritual faraônico, e me perguntei: ‘Cadê o filme aqui? Vou montar uma aventura como o Corra Lola, corra e não uma fita que tenha algo de Robert Flaherthy”, diverte-se ele, numa referência ao cineasta que fundou uma escola atenta às relações entre os humanos e a natureza.

Superadas as dificuldades, Sette, ao lado do colega Takumã Kuikuro (cineasta saído do povo indígena Kuikuro), completou a obra, que dá a partida na competição do 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, hoje, no Cine Brasília. Exibido no Festival de Gramado em agosto, As hiper mulheres é definido pelo terceiro diretor, o antropólogo Carlos Fausto, como “um filme sobre música, memória e transmissão do conhecimento, que passa pelo afeto das relações pessoais”.

“Foi uma operação de tentar desconstruir e envolver — começar naquilo pequeno, no cotidiano dos índios. Se entrássemos logo com uma monumental sequência de dança, as pessoas iam dizer: ‘Ah, tá, filme de índio? Não, vira um mantra e eu tô fora’”, completa Sette.

Ciente da resistência do público a produções etnográficas ou que supracontextualizem o tema, o trio tem o olhar sintetizado pela visão de Fausto: “Filmes que tenham índios como personagens ficam num nicho restrito: ninguém vê. Há duas correntes, em geral: uma atitude é encantada — ‘índio, natureza, harmonia? Que lindo, que bacana!’ — e a outra associa o filme a atraso e a algo que não queira ver”. É por outra via — “fruto de um longo trabalho que conquistou a intimidade e a liberdade dos indígenas diante da câmera” —, portanto, que As hiper mulheres chegou às telas.

Produto de uma política de Estado, pelo incentivo à valorização de patrimônio imaterial (o canto das mulheres Kuikuro), o longa derivou do projeto Vídeo nas aldeias, implantado em 1987 pelo diretor Vincent Carelli. O ritual capturado no Mato Grosso para o filme não ocorria desde 1982.

O contato com a contemporaneidade no documentário detido nos festejos — que culminam em menos de um dia (mas que exigem mais de 30 dias de prelúdio) e reúnem mais de 1.400 pessoas — transparece de modo surpreendente: há registros de divertidos jogos eróticos, na tribo, e a “sacanagem” também alcança parte das legendas que enveredam para o cômico — longe “do pudor e da distância”, segundo Sette, empregada nas legendas de outros documentários.

Tradição convalescente
A dramaturgia de As hiper mulheres se fortaleceu, num impasse oferecido pelo acaso: adoentada, Kanu é uma espécie de guardiã das músicas entoadas no maior ritual feminino Kuikuro, o Jamurikumalu (relacionado ao termo itão kuegü, mulher e hiper, pela ordem, designador de seres extraordinários), à beira do precipício, diante do escasso número de conhecedoras.

“As mulheres são a própria essência do filme. O ritual defendido tematiza uma espécie de utopia feminina de ocupar também a posição masculina, numa situação de conflito. Elas acabam demonstrando que uma sociedade não é possível sem homens e mulheres”, comenta o diretor Carlos Fausto. No cenário onde vivem — em três aldeias estão 700 kuikuros —, curiosamente, as mulheres ainda tendem a não empregar a língua portuguesa.

Saber que o acervo de cantos foi constituído por 130 horas de músicas gravadas (à capela e sem repetição) dá a medida da revitalização cultural em jogo em As hiper mulheres. Para tornar tudo ainda mais complexo, o aprendizado, na tradição oral, tem que seguir métrica preestabelecida e organizada em nós, feitos em palhas de buriti.

Em quase 100 horas de imagens, o entrosamento do trio de diretores com as mulheres da tribo foi privilegiado. “É difícil eu chegar perto delas. Na aldeia, se fica perto da mulher, pensam que a gente tá namorando”, observa Takumã. Ele explica que o processo, grosso modo, foi o de “ficar filmando, e deixar eles (os índios) agirem naturalmente, pra não ficar um documentário, assim, falso”.

“Nem tudo é verdade no filme, mas tudo é verdadeiro. A câmera estar, permanentemente, na mão deles permite resultados impossíveis para quem não seja do Xingu”, completa Carlos Fausto. Apesar de algumas encenações (sem diálogos impostos, mas esboçados pelos “personagens de si mesmos”), o antropólogo conta que tudo foi muito autêntico. “Não tivemos treinamento de atores, a maior parte do documentário segue a linha stricto sensu (em sentido restrito)”, conta.

Arredias para tomarem parte nos meandros técnicos, as índias se animaram diante do resultado obtido. Termômetro para as reações, Takumã explica que “no começo elas se acharam feias, mas foi brincadeira — na verdade, elas estão gostando muito. Elas têm o pensamento da maioria, por terem participado do filme. Dizem: ‘A gente não vai morrer mais, a gente vai sobreviver, o tempo todo’”.


44º FESTIVAL DE BRASÍLIA

Nesta terça (27/9), às 20h30, no Cine Brasília (106/107 Sul). Ingressos: R$ 6 e R$ 3 (meia). Exibição simultânea dos filmes no Teatro Sesc Newton Rossi, na QNN 27 de Ceilândia; no Teatro de Sobradinho (Q. 12); e no Cinemark Taguatinga Shopping (Q. 1). Ingressos: R$ 4 e R$ 2 (meia). Não recomendado para menores de 14 anos.



Fonte: Correioweb

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